As comunicações diretas entre satélites e dispositivos (D2D – Direct-to-Device) estão se consolidando como uma das principais fronteiras tecnológicas do setor espacial e de telecomunicações. O tema, que promete revolucionar o acesso à conectividade em regiões remotas, foi discutido em profundidade no painel “D2D: presente, futuro, modelos e aplicações”, realizado durante o Congresso Latinoamericano de Satélites.
Participaram da discussão Kevin Cohen, diretor comercial da iniciativa Direct-to-Device da Viasat Inc.; Leonardo Finizola, diretor sênior de produtos para IoT Latam da Qualcomm; e Érika Rossetto, gerente de dinâmica orbital da Claro Empresas e diretora da Space Data Association.
Constelações híbridas e integração global
Ao apresentar a estratégia da Viasat para o mercado D2D, Kevin Cohen destacou que a empresa trabalha com espectro global em banda L e já opera com equipamentos compatíveis com o padrão 3GPP Release 17, o que viabiliza a conexão direta entre satélites e smartphones convencionais.
Segundo ele, o novo ecossistema permitirá serviços híbridos, nos quais o usuário poderá alternar entre redes terrestres e satelitais sem interrupção. “Já estamos oferecendo nos EUA um serviço de emergência via satélite, similar ao da Apple, e expandindo para parcerias com operadoras como a Verizon, que planeja oferecer SMS via satélite fora da cobertura celular”, afirmou.
Cohen ressaltou o potencial da tecnologia em países como o Brasil, onde apenas 18% do território tem cobertura celular. “Há enormes oportunidades para expandir a conectividade em regiões rurais, agrícolas e de infraestrutura crítica”, disse.
A Viasat também prepara o lançamento de uma nova constelação em órbita baixa (LEO), prevista para 2028–2029, que vai operar em banda MSS e ampliar a capacidade de tráfego e a qualidade do serviço. O projeto, desenvolvido em parceria com a Space 42 (antiga Yahsat), busca reduzir a dependência da linha de visada típica dos satélites geoestacionários.
IoT e satélite caminham para integração total
Para Leonardo Finizola, da Qualcomm, o avanço das redes NTN (Non-Terrestrial Networks) representa uma expansão natural do ecossistema IoT e uma oportunidade estratégica para países com baixa cobertura terrestre.
“Apenas 40% da infraestrutura de utilities no Brasil tem cobertura de conectividade. Isso mostra o potencial que o satélite tem para complementar o 5G e viabilizar a digitalização de setores como energia, transporte e agronegócio”, destacou.
A Qualcomm, que detém cerca de 40% do mercado global de chipsets para IoT, aposta na padronização do D2D como forma de democratizar o acesso. “Com o 3GPP, qualquer fabricante — de um celular a um sensor agrícola — poderá integrar conectividade satelital de forma simples e interoperável”, explicou.
Finizola ponderou que as previsões iniciais do mercado de IoT foram superestimadas, mas que agora o crescimento se dá de forma mais realista e sustentável. “As aplicações se consolidam em nichos de alto valor, como rastreabilidade, utilities e agricultura conectada, e a integração com satélites dará novo impulso a essa expansão”, disse.
Ele lembrou ainda que o grande desafio está em estruturar o ecossistema produtivo local — que envolve desde a fabricação de módulos e sensores até a homologação de equipamentos no Brasil. “Precisamos de escala e demanda concreta para justificar a produção e o investimento. A padronização global é o caminho para destravar isso”, completou.
Conectividade e sustentabilidade precisam andar juntas
Representando o setor de operação de satélites, Érika Rossetto, da Claro Empresas, trouxe uma perspectiva crítica sobre o uso sustentável do espaço orbital.
Segundo ela, já existem mais de 30 mil objetos catalogados em órbita, e a maioria deles está em órbita baixa — justamente onde se concentram as novas constelações de D2D. “O espaço é um recurso limitado. Se não for utilizado de forma coordenada, podemos tornar inviável sua exploração no futuro”, alertou.
Rossetto destacou que o excesso de satélites e detritos espaciais já começa a afetar observações científicas e astronômicas, tema que vem sendo tratado por legislações internacionais como o Space Act da União Europeia, que cria diretrizes para uso responsável e mitigação de impactos ópticos e orbitais.
Outro ponto levantado pela executiva foi o descompasso entre avanço tecnológico e inclusão social. Dados apresentados por ela mostram que, na América Latina, as famílias rurais de baixa renda têm duas vezes menos acesso à conectividade do que as urbanas. “Não basta avançar tecnicamente. É preciso garantir que essas tecnologias sejam acessíveis, compreensíveis e economicamente viáveis”, disse.
Rossetto também defendeu o uso de arquiteturas multi-órbita — combinando satélites geoestacionários e de baixa órbita — para ampliar cobertura com menor impacto ambiental. “Nem todas as aplicações exigem baixa latência. Em muitos casos, o GEO é suficiente e muito mais sustentável”, afirmou.
Desafios de mercado e sustentabilidade do ecossistema
Ao final do debate, os participantes convergiram em um ponto: o futuro do D2D depende tanto da escala tecnológica quanto de modelos de negócio sustentáveis.
Para Kevin Cohen, é essencial que exista demanda real — tanto de consumidores quanto de setores empresariais — e que os custos de infraestrutura e equipamentos se tornem competitivos. Ele acredita que o mercado pode comportar vários players, com diferentes nichos e verticais de atuação. “Como nas telecomunicações, três ou quatro operadores fortes podem coexistir de forma saudável, atendendo demandas distintas de conectividade”, avaliou.
Finizola, por sua vez, enfatizou a necessidade de maturidade e colaboração no ecossistema: “Não se trata apenas de lançar satélites. É preciso construir a cadeia completa — dispositivos, módulos, integração e serviços — para que o D2D se torne realidade comercial”.
Rossetto concluiu o painel com uma provocação: “como garantir que a conectividade via satélite avance sem comprometer a sustentabilidade orbital e sem deixar para trás quem ainda não tem acesso à internet? Esse é o verdadeiro desafio — tecnológico, social e regulatório — que o setor precisa enfrentar coletivamente.”
O painel mostrou que o D2D está deixando o campo da experimentação para entrar na fase de implantação comercial, impulsionado pela padronização global e pela complementaridade com as redes 5G. No entanto, a pressão sobre o espectro e o espaço orbital, somada à necessidade de modelos inclusivos, torna indispensável um novo equilíbrio entre inovação, regulação e sustentabilidade — um desafio que definirá o futuro da conectividade global.


