O avanço das megaconstelações e a crescente disputa pelo espectro orbital estão transformando profundamente o cenário competitivo e regulatório da indústria de satélites. No Congresso Latinoamericano de Satélites, o painel “Do espectro à sustentabilidade: desafios até a WRC-2027” reuniu representantes da Anatel, da Abrasat e da Viasat para discutir como essa nova dinâmica impacta inovação, competição e sustentabilidade no setor. Participaram a gerente de espectro da Anatel, Kim Mota; o diretor de Relações Governamentais e Regulatórias da Viasat, Ryan Johnson e a diretora da Abrasat, Michelle Caldeira.
Entre os principais alertas, Ryan Johnson, chamou atenção para o risco de concentração de espectro nas mãos de poucas empresas globais. Segundo ele, a tendência pode ter efeitos desastrosos sobre a diversidade de operadores e o desenvolvimento de soluções nacionais. “Se o espectro acabar controlado por uma ou duas companhias, o impacto será grave para todo o ecossistema. É preciso garantir espaço para a inovação e para novos players”, afirmou.
Johnson destacou que o setor enfrenta desafios técnicos relevantes para garantir a coexistência entre satélites geoestacionários (GEO) e não geoestacionários (NGSO), especialmente com o aumento das constelações em órbitas baixas e médias. Ele criticou o modelo atual da União Internacional de Telecomunicações (UIT) para medição de interferência — conhecido como EPFD (Equivalent Power Flux Density) — por não acompanhar o avanço tecnológico e não refletir as condições reais de operação em diferentes regiões do planeta.
Aquisição da EchoStar pela Starlink acende alerta
O debate também abordou a recente compra de espectro da EchoStar pela Starlink, uma transação bilionária que reforçou as preocupações sobre consolidação global no setor.
Kim Mota, explicou que o movimento ainda não tem reflexo direto no Brasil, mas a agência acompanha de perto a situação. “Negociações desse porte nos mercados internacionais sempre nos chamam a atenção. Ainda não houve pedido de transferência de frequências no Brasil, mas estamos atentos a possíveis impactos. Nossa prioridade é preservar um ambiente competitivo, com o maior número de operadores possível”, afirmou.
Kim destacou que a Anatel possui instrumentos regulatórios para analisar pedidos de transferência de espectro sob a ótica da competição e do interesse público, e reforçou que a agência “não compactua com práticas de caráter predatório”.
WRC 2027: sustentabilidade e consenso na agenda internacional
Michelle Caldeira enfatizou que os interesses hoje são múltiplos e difusos — o que torna o consenso entre países e empresas um dos grandes desafios para a Conferência Mundial de Radiocomunicações de 2027 (WRC-27).
“Há modelos de negócio muito diferentes, desde o uso de faixas do IMT até o desenvolvimento de Direct-to-Device em faixas do MSS. Ainda assim, temos buscado construir, no âmbito da Abrasat e da GSOA, posições de consenso, sempre priorizando a convivência entre sistemas e a proteção dos serviços existentes”, afirmou.
Para ela, o tema central da conferência será justamente a convivência entre diferentes sistemas — geostacionários e não-geoestacionários — e como garantir que novos entrantes tenham espaço sem que o mercado se concentre em poucos operadores.
“A decisão na WRC é por consenso, então as soluções precisam equilibrar interesses e abrir oportunidades para o setor”, disse.
Regulação em tempos de inovação acelerada
Outro ponto discutido foi o descompasso entre os ciclos regulatórios internacionais, de quatro em quatro anos, e o ritmo de inovação tecnológica, cada vez mais veloz.
“De um ano para cá, já temos IoT via satélite, serviços Direct-to-Device e novos modelos híbridos. É um desafio conciliar a segurança regulatória com a agilidade que o mercado exige”, observou Kim Mota.
A Anatel vem apostando em mecanismos como “sandbox regulatórios” — ambientes de testes controlados — para permitir experimentação sem comprometer a proteção dos sistemas existentes. A ideia é flexibilizar regras e acelerar a atualização de requisitos técnicos diante da convergência entre redes terrestres e satelitais.
“Precisamos manter a proteção e a competição, mas sem criar barreiras à inovação”, completou Kim.
Novas fronteiras da competição
Com a entrada de serviços híbridos e de conectividade direta via satélite, a fronteira entre telecomunicações terrestres e espaciais começa a se dissolver. Esse cenário traz novos desafios para os reguladores, que passam a considerar não apenas aspectos técnicos — como interferência e posicionamento orbital —, mas também questões concorrenciais e de infraestrutura crítica.
Kim Mota afirmou que, embora a Anatel ainda não identifique concentração preocupante, o tema será acompanhado de perto.
“Temos conseguido manter um mercado aberto, com múltiplos players. Mas, se observarmos assimetrias competitivas intensas, poderemos reavaliar o PGMC para garantir a competição e o interesse público.”
Para Ryan Johnson, a defesa da coexistência é também uma questão de soberania tecnológica e econômica. “Muitos países ainda dependem de capacidade nacional para serviços estratégicos e de segurança. Não podemos deixar que a competição global elimine essa possibilidade”, completou.
Um setor em transformação
O painel mostrou que a indústria de satélites vive um momento de inflexão. O avanço das megaconstelações e a convergência tecnológica desafiam modelos regulatórios tradicionais, exigindo cooperação entre países, empresas e órgãos reguladores.
Entre a corrida pelo espectro e a busca por sustentabilidade, o setor se prepara para a WRC 20277 com a consciência de que o futuro da conectividade global — e o equilíbrio do mercado orbital — dependem de decisões tomadas agora.


