O setor de comunicações via satélite vive uma transformação estrutural. Depois de décadas pautado pela estabilidade das órbitas geoestacionárias (GEO) e, mais recentemente, pela chegada das constelações em órbita baixa (LEO), o debate agora se volta para a integração entre diferentes altitudes. Essa é a essência do conceito multi-órbita, que propõe uma nova arquitetura de conectividade: dinâmica, escalável e orientada a serviços.
No painel “Multi-órbita: a realidade, vantagens e os desafios”, realizado no Congresso Latinoamericano de Satélites, com a participação de Eloi Stivalletti, diretor de vendas da Eutelsat; Ana Carolina Botelho, consultora da NovaSpace, e Fábio Alencar, vice-presidente de vendas da SES, o tema foi discutido sob uma ótica que vai além da tecnologia — abrangendo a lógica de uso, os modelos de negócio e a sustentabilidade de longo prazo da infraestrutura espacial.
Redes multi-órbita, a próxima fronteira tecnológica
O conceito de redes multi-órbita vem se consolidando como a próxima fronteira tecnológica da conectividade global. No Brasil, a tendência ganha força em segmentos críticos como óleo e gás, defesa, mineração e comunicação marítima. “Estamos saindo de décadas de domínio das constelações em LEO, que trouxeram flexibilidade e baixa latência. Mas o futuro está na orquestração entre as órbitas, com eficiência e sustentabilidade”, destacou Ana Carolina Botelho, ao abrir o debate.
Para os especialistas, o grande avanço está em combinar o melhor de cada órbita, aproveitando a baixa latência dos LEOs, a cobertura ampla dos GEOs e a eficiência intermediária dos MEOs. “Não se trata de substituir uma tecnologia por outra, mas de orquestrar recursos de forma inteligente”, observou Ana Carolina.
Esse movimento reflete uma mudança conceitual importante: o espaço deixa de ser um conjunto de plataformas isoladas e passa a funcionar como um sistema integrado de redes. A conectividade deixa de ser medida apenas por cobertura e velocidade e passa a incluir métricas de resiliência, adaptabilidade e eficiência de uso do espectro.
Eficiência e robustez na prática
Empresas como a Eutelsat OneWeb e a SES já operam com soluções comerciais de múltiplas órbitas no Brasil. Eloi Stivalletti, destacou que o modelo permite atender aplicações que exigem alto nível de disponibilidade (SLA), sem depender de redes públicas. “O mercado corporativo busca redes privadas, sem compartilhamento com o residencial. Hoje temos quase mil estações ativas no país, atendendo clientes que não podem correr o risco de ficar fora do ar”, afirmou.
A tecnologia SD-WAN tem sido um pilar dessa integração, ao permitir o uso combinado de links GEO e LEO. “Em plataformas offshore, por exemplo, usamos SD-WAN para unir as vantagens das duas tecnologias. O GEO garante estabilidade; o LEO traz baixa latência”, completou Eloi.
Fábio Alencar lembrou que o modelo multi-órbita é uma questão de adequação e custo: “cada aplicação tem o seu tamanho. Nem sempre é preciso usar todas as órbitas em todos os sites. Em alguns casos, a combinação certa reduz custos e melhora o desempenho”. Segundo ele, a SES aposta na integração de satélites e redes terrestres de fibra para entregar soluções completas. “Temos de parar de vender tecnologia e passar a vender conectividade. Se for preciso incluir a fibra ou até serviço de outro operador, incluiremos”.
Mercado e tendências até 2030
Para a Nova Space, o mercado de multi-órbita ainda está em estágio inicial no Brasil, mas tende a escalar fortemente a partir de 2030. “A internet a bordo e a conectividade para defesa devem puxar essa expansão. O país tem uma posição estratégica e uma diversidade de aplicações que podem ser exploradas de forma ótima”, observou Ana Carolina.
Os avanços também dependem da evolução tecnológica dos terminais — como as antenas planas (flat panels) — e da queda de custos. “Os preços vêm caindo, ainda que não no ritmo que esperávamos. Mas à medida que o volume crescer, isso vai se acelerar”, avaliou Eloi.
Um dos pontos mais discutidos no painel foi o impacto do marketing de empresas como a Starlink, que popularizou o uso doméstico de satélites LEO. Para os especialistas, a comunicação agressiva cria uma “ilusão de simplicidade” que não se adequa a aplicações críticas. “O mercado começa a entender que não se trata de uma commodity. A diferença está no nível de serviço, no SLA. É isso que garante 99,9% de disponibilidade — e isso tem custo”, explicou Fábio Alencar. “O desafio é equilibrar a percepção de valor com a pressão por preço baixo.”
Integração é o caminho
Os participantes concordaram que o sucesso do multi-órbita depende da integração entre provedores, fabricantes e clientes corporativos. “Cada elo da cadeia precisa colaborar. As soluções não são plug and play — envolvem engenharia, segurança e gestão de rede 24×7”, resumiu Eloi.
O consenso final foi de que a combinação inteligente das órbitas não apenas amplia a cobertura, mas também oferece resiliência e sustentabilidade econômica — dois pilares essenciais para a nova era da conectividade.
Os especialistas concordam que o ciclo de maturação do multi-órbita ainda levará alguns anos. Mas o caminho já está traçado. A integração entre órbitas, a evolução dos terminais e a adoção de sistemas definidos por software devem ganhar impulso ao longo da década. Mais do que uma tendência tecnológica, trata-se de um reposicionamento conceitual sobre o papel do espaço na infraestrutura digital do planeta.


