Mario Maniewicz: “A gestão global do espectro enfrenta diversos desafios”

Mario Maniewicz

Este mês, Mario Maniewicz, Diretor do Setor de Radiocomunicações (ITU-R) da União Internacional de Telecomunicações (UIT), agência especializada das Nações Unidas, concedeu uma entrevista exclusiva para a Abrasat. No cargo desde 2019, nesta entrevista ele apresenta sua visão sobre temas diversos, como os desafios relacionados à gestão global do espectro, o impacto de tecnologias emergentes como 6G e IA nas necessidades de espectro, o papel das redes não terrestres e das constelações LEO no futuro da conectividade global, a promoção da inclusão digital e a sustentabilidade do uso do espaço.

Engenheiro eletrônico de formação, Mario Maniewicz é natural do Uruguai e possui uma extensa carreira internacional na área de telecomunicações, com mais de 30 anos de experiência na UIT. Como Diretor da UIT-R, ele lidera os trabalhos técnicos e normativos globais relacionados ao uso eficiente do espectro e das órbitas de satélite, promovendo a cooperação internacional e a inclusão digital, especialmente em países em desenvolvimento. Acompanhe a entrevista a seguir, ou veja a versão original em inglês clicando aqui.

Abrasat: Quais são os maiores desafios atualmente relacionados à gestão global do espectro?

Mario Maniewicz: A gestão global do espectro enfrenta diversos desafios. Um dos principais é o aumento da demanda por espectro, impulsionado pelo crescimento de novos serviços e aplicações móveis e via satélite. Essa demanda aumenta a competição por recursos espectrais e orbitais e também a complexidade no compartilhamento do espectro.

As diferenças nos interesses nacionais e nos níveis de desenvolvimento também dificultam a formulação de regulamentações internacionais.

Outro desafio é a necessidade de que os marcos regulatórios acompanhem a evolução tecnológica. Embora sejam necessárias atualizações para refletir as novas tecnologias, as regulamentações também precisam oferecer estabilidade para operadores e administrações.

A atual implantação de grandes constelações de satélites não geoestacionários introduz novos desafios regulatórios e de coordenação devido ao seu tamanho e complexidade. Uma das dificuldades é garantir que os limites de potência sejam eficazes na prevenção de interferências com satélites geoestacionários.

O número crescente de satélites e missões espaciais também levanta preocupações sobre a sustentabilidade das operações no espaço, que dependem da gestão e coordenação do espectro.

As questões de interferência e compatibilidade também estão aumentando, especialmente em serviços como os de Navegação por Satélite (RNSS). Esses casos destacam a necessidade de aplicar as regulamentações existentes para proteger sistemas usados para a segurança da vida.

Por fim, as administrações e os operadores devem cumprir as regulamentações internacionais e respeitar os direitos das demais administrações. Isso inclui a prevenção de transmissões não autorizadas, especialmente de sistemas não-geoestacionários que possam interferir em serviços autorizados.

Como se pode ver, a gestão global do espectro enfrenta diversos desafios que exigem esforços coordenados internacionalmente. A UIT-R busca fornecer normas e regulamentações internacionais que superem esses desafios e garantam o uso eficiente e equitativo dos recursos espectrais e orbitais.

Abrasat: Na sua opinião, quais são as prioridades para a próxima CMR-27?

Mario Maniewicz: A agenda da Conferência Mundial de Radiocomunicações de 2027 (CMR-27) reflete um forte foco nos serviços de satélite e ciência, que representam mais de 80% dos itens em discussão. Essa distribuição indica as prioridades atuais dos membros da UIT-R.

Exemplos de itens dessa agenda incluem:

  • Novas faixas de frequência para IMT (CMR-27 – Item 1.7): identificação de faixas adicionais para o componente terrestre das Telecomunicações Móveis Internacionais (IMT), com estudos de compartilhamento, compatibilidade e definição de condições técnicas de uso, assegurando a proteção dos serviços já atribuídos às faixas.
  • Serviço móvel por satélite – Desenvolvimento de IoT (CMR-27 – Item 1.12): possíveis alocações para o serviço móvel por satélite visando ao desenvolvimento da Internet das Coisas (IoT). Serão realizados estudos para apoiar sistemas móveis por satélite de baixa taxa de dados e órbita não geoestacionária.
  • Conectividade direta entre estações espaciais e IMT (CMR-27 – Item 1.13):
    ações regulatórias, incluindo possíveis novas alocações ao serviço móvel por satélite para permitir a comunicação direta entre estações espaciais e dispositivos IMT, como forma de complementar a cobertura das redes terrestres. Estão previstos estudos sobre faixas já utilizadas pelos sistemas IMT terrestres.
  • Futuro do serviço móvel por satélite – Novas alocações (CMR-27 – Item 1.14):
    possíveis novas alocações de frequência e condições regulatórias associadas para apoiar a implementação de aplicações, especialmente em áreas remotas e não atendidas.

Abrasat – Como o Bureau está se preparando para o impacto de tecnologias emergentes como 6G e IA nas necessidades de espectro?

Mario Maniewicz – A UIT desenvolve e atualiza normas e regulamentações internacionais que apoiam a introdução de novas tecnologias, incluindo o 6G e a Inteligência Artificial (IA).

Como nas gerações anteriores das Telecomunicações Móveis Internacionais (IMT), foi definido um cronograma claro de padronização para o 6G, denominado IMT-2030 (veja o “Cronograma do IMT-2030”). Esse cronograma descreve a progressão desde a definição de requisitos e critérios de avaliação até o recebimento de propostas técnicas e a aprovação de especificações.

A fase inicial do IMT-2030 foi concluída com a aprovação da Recomendação “Estrutura e objetivos gerais para o desenvolvimento futuro do IMT para 2030 e além”, que estabeleceu a base para os trabalhos seguintes.

Atualmente, a UIT está desenvolvendo os requisitos de desempenho técnico e os critérios comuns de avaliação para as tecnologias candidatas de interface rádio (RIT) do componente terrestre do IMT-2030.

Paralelamente, a UIT abriu o período para o envio de propostas de RITs candidatas, de fevereiro de 2027 a fevereiro de 2029, e notificou organizações externas relevantes, incluindo órgãos de padronização e fóruns da indústria.

Mais detalhes sobre o processo de avaliação e os grupos independentes de avaliação (IEG) estão disponíveis na “Página web do processo de submissão e avaliação do IMT-2030”.

Quanto ao espectro para os serviços 6G, as faixas de frequência já identificadas para IMT em conferências anteriores poderão ser usadas por sistemas 3G, 4G, 5G e os futuros IMT-2030. Além disso, conforme já mencionado, o Item 1.7 da agenda da CMR-27 tratará da identificação de novas faixas para o componente terrestre do IMT.

Na área de Inteligência Artificial, a UIT-R conduz atividades em diversas frentes:

  • O Grupo de Estudo 1 publicou um relatório sobre a próxima geração de monitoramento do espectro, com foco na aplicação de métodos de ciência de dados, incluindo IA e big data, para automação nesse monitoramento.
  • O Grupo de Estudo 3 organizou um workshop sobre “Aplicações de aprendizado de máquina na previsão da propagação de ondas de rádio”, destacando seu uso no desenvolvimento de modelos de parâmetros ou fenômenos relevantes para essas previsões.
  • O Grupo de Estudo 6 trabalha com o uso de IA na radiodifusão, incluindo a aplicação de IA generativa em programas de TV e rádio, na automação de fluxos de produção e na extração de objetos de áudio e vídeo durante o processo de criação.

Abrasat –  Qual é a sua visão sobre o papel das redes não terrestres e das constelações LEO no futuro da conectividade global?

Mario Maniewicz – As redes terrestres e não terrestres (NTNs) desempenham ambas um papel importante na conquista da conectividade global. As NTNs, incluindo as constelações de satélites em órbita baixa (LEO), não têm como objetivo substituir os sistemas terrestres, mas sim complementá-los.

As NTNs podem estender a cobertura dos sistemas IMT terrestres para áreas remotas e mal atendidas, onde a infraestrutura terrestre é limitada ou inexistente. Sua capacidade de fornecer comunicações de ampla cobertura e baixa latência as torna adequadas para aumentar a resiliência das redes, oferecer cobertura global de internet e apoiar serviços como monitoramento em tempo real e navegação.

A UIT-R está finalizando as especificações detalhadas para o componente satelital do IMT-2020 e conduzindo estudos sobre o desenvolvimento futuro do IMT-2030 baseado em satélite. Além disso, decisões da CMR-27 podem apoiar a conectividade direta entre estações espaciais e equipamentos de usuário IMT usando as mesmas faixas de frequência atualmente atribuídas aos sistemas terrestres IMT.

Com o aumento da demanda por conectividade universal, espera-se que as NTNs e as constelações LEO se tornem componentes-chave de uma infraestrutura híbrida e integrada que sustentará a próxima geração de redes móveis e serviços de comunicação, atendendo tanto consumidores quanto indústrias.

Abrasat – Como a UIT está se adaptando ao aumento de registros de satélites (filings) e mega-constelações? Como tem trabalhado para garantir o sucesso da coordenação entre sistemas GSO e NGSO, considerando o crescimento das constelações não geoestacionárias?

Mario Maniewicz  – O número de registros de satélites submetidos à UIT aumentou significativamente, impulsionado pela expansão dos pequenos satélites e constelações em órbita não geoestacionária (NGSO). Em resposta, a UIT-R atualizou sua estrutura regulatória e seus procedimentos operacionais para proteger o uso compartilhado dos recursos espectrais e orbitais.

Um dos principais objetivos da UIT-R é gerir o espectro de frequência e garantir que os serviços de radiocomunicação, incluindo os serviços espaciais, operem livres de interferências prejudiciais. O Regulamento de Radiocomunicações (RR) contém disposições para apoiar esse objetivo por meio de diversos mecanismos regulatórios e técnicos:

  • Atribuição: As faixas de frequência são atribuídas a serviços específicos nas três Regiões da UIT. Notas de rodapé na Tabela de Atribuições podem impor restrições adicionais.
  • Limites de Potência: Limites como PFD, EIRP e EPFD são aplicados a diferentes faixas e serviços para proteger outros sistemas e permitir o compartilhamento.
  • Coordenação: A coordenação entre administrações e operadores ajuda a garantir operações sem interferências e facilita a comunicação entre fronteiras.
  • Registro: As atribuições de frequência que atendem aos critérios da UIT são registradas no Registro Internacional de Frequências Mestre (MIFR) com pareceres favoráveis, recebendo reconhecimento e proteção internacional. Isso também permite o acompanhamento do uso do espectro.
  • Monitoramento: Sistemas internacionais de monitoramento são utilizados para supervisionar o uso do espectro, detectar problemas de interferência e verificar o cumprimento das normas.

O Bureau de Radiocomunicações realiza exames técnicos para cada rede de satélite submetida e publica os resultados no Boletim Internacional de Informações sobre Frequências (BRIFIC) quinzenalmente. Esse processo considera condições técnicas como limites EPFD de entrada única e agregada para proteger os sistemas GSO de redes NGSO.

Quando há interferência, mesmo após os procedimentos de coordenação e notificação, o Regulamento de Radiocomunicações oferece mecanismos para notificação e resolução, conforme o Artigo 15 e o Apêndice 10. O Bureau de Radiocomunicações apoia as administrações na resolução desses casos, que também podem ser encaminhados à Junta de Regulamentos de Radiocomunicações, se necessário.

Além disso, a UIT-R realiza estudos de compatibilidade e compartilhamento e atualiza recomendações e relatórios para enfrentar riscos de interferência.

Na Conferência Mundial de Radiocomunicações de 2023 (CMR-23), a UIT-R abordou a necessidade de proteger redes de serviços fixos por satélite (FSS) e serviços de radiodifusão por satélite (BSS) geoestacionárias contra os efeitos do EPFD máximo agregado produzido por múltiplos sistemas FSS não-GSO operando em faixas onde tais limites estão estabelecidos.

A Resolução 76 revisada reconhece que, embora sistemas NGSO individuais possam cumprir os limites de EPFD, a emissão combinada de múltiplos sistemas pode exceder os limiares aceitáveis e afetar o desempenho das redes GSO. Para enfrentar isso, a CMR-23 introduziu uma abordagem mais estruturada de monitoramento e coordenação.

A UIT trabalha para garantir que tanto os sistemas GSO tradicionais quanto os novos sistemas NGSO possam operar de forma eficaz e sem interferências prejudiciais.

Abrasat – Como a UIT-R está trabalhando para promover a inclusão digital e melhorar o acesso às telecomunicações em áreas remotas e desfavorecidas?

Mario Maniewicz – Trabalho da UIT-R na revisão do Regulamento de Radiocomunicações, na harmonização do uso do espectro e no desenvolvimento de normas globais para tecnologias móveis e por satélite apoia economias de escala, reduz o custo dos serviços e dispositivos, e ajuda a expandir a conectividade de banda larga. Isso contribui para o avanço da inclusão digital em todo o mundo.

Atualmente, a maior parte da população mundial está coberta por redes móveis de banda larga. No entanto, áreas rurais e remotas que ainda permanecem desconectadas geralmente dependem do uso de redes por satélite. Conforme mencionado, o item 1.13 da agenda da CMR-27 avaliará a conectividade direta entre estações espaciais e dispositivos IMT, o que pode ajudar a estender ainda mais a cobertura das redes terrestres.

Para apoiar os Estados-Membros, especialmente os países em desenvolvimento, o Bureau de Radiocomunicações (BR) oferece assistência técnica, além de seminários e workshops para disseminar conhecimento sobre tecnologias de radiocomunicação e práticas regulatórias.

O Bureau também oferece uma variedade de aplicações de software e ferramentas digitais, como o ITU Space Explorer, a ferramenta de navegação do RR, o RR5 TFA Software, e plataformas para submissão e comunicação eletrônica. Além disso, mantém bancos de dados, recursos online, publicações, manuais e diretrizes. Esses recursos ajudam a fortalecer a capacidade nacional para a gestão eficaz do espectro radioelétrico.

Abrasat – Poderia comentar sobre os esforços da UIT para garantir a sustentabilidade do uso do espaço, diante do aumento do número de objetos em órbita e da crescente preocupação com os detritos espaciais?

Mario Maniewicz – A Conferência de Plenipotenciários da UIT de 2022 adotou a Resolução 219, que solicita estudos urgentes sobre o uso crescente do espectro de radiofrequências e dos recursos orbitais em órbita não geoestacionária, com foco na sua sustentabilidade a longo prazo. Complementando essa, a Resolução 218 reforçou o compromisso da UIT com a ampliação do acesso global ao espaço e com a garantia de que todos os países se beneficiem socioeconomicamente da ciência e tecnologia espaciais, em apoio à Agenda “Space2030” das Nações Unidas.

A Assembleia de Radiocomunicações (RA) de 2023 adotou a Resolução UIT-R 74, promovendo o uso sustentável dos limitados recursos espaciais e solicitando o desenvolvimento de uma nova recomendação sobre estratégias seguras e eficientes de desorbitamento e descarte ao fim da vida útil de estações espaciais não-GSO. A UIT também está desenvolvendo um Manual de Melhores Práticas para o Uso Sustentável das Frequências e Órbitas Não-GSO Associadas.

A UIT lançou o Portal de Sustentabilidade Espacial, que compila estratégias de desorbitamento pós-missão ou descarte de espaçonaves, diretrizes, códigos de conduta e boas práticas submetidas por administrações e operadores.

A UIT criou também a série de webinars “Space Connect”, oferecendo discussões virtuais mensais sobre tendências emergentes e temas críticos do setor espacial em rápida evolução, como segurança espacial, gestão do espectro, monitoramento climático, resposta a emergências, desenvolvimento econômico, entre outros assuntos relacionados a constelações não geoestacionárias.

A UIT organizou o primeiro Fórum de Sustentabilidade Espacial em setembro de 2024, com mais de 1.000 participantes de 90 países, incluindo representantes das Nações Unidas e outras Agências Especializadas. Esse fórum tornou-se agora uma plataforma anual para aumentar a conscientização, promover comportamentos sustentáveis nas atividades espaciais e fortalecer a cooperação com outras organizações da ONU sobre sustentabilidade no espaço. O próximo Fórum está agendado para os dias 7 e 8 de outubro de 2025, em Genebra.

A UIT também colabora estreitamente com a UNOOSA, COPUOS e outras organizações da ONU em atividades espaciais atuais e futuras, além de manter parcerias com a IARU e outras entidades internacionais sobre temas relevantes ao setor espacial.